sexta-feira

Escolarização e a fabricação de crianças e jovens normóticos

Sobre a escolarização de crianças e jovens a partir dos “pacotes” de gênero e sexualidade

A educação perpassa toda a existência de um indivíduo, interpelando-o de valores, condutas, hábitos, atitudes e saberes. Somos convidados a aprender em nossa existência, sempre que interagimos com qualquer objeto de conhecimento, assim nos dizem os teorizações construtivistas da educação.
A educação pode ser plural, pode ocorrer em qualquer ambiente, seguindo diferentes metodologias e concepções de ensinar-aprender, porém sob a ótica da escolarização continua, na maioria dos casos, limitando aprendizagens à espaços e formas normatizadoras. A longa trajetória escolar e acadêmica, da qual nos cobram que avancemos gradativamente, configura-se como uma escalada para alcançar o sucesso. Nessa subida, nos projetam em modelos bem específicos de sujeitos, nos engendram em modos especiais de ser “homem” e modos de ser “mulher”.
Obviamente, a escola não é o único aparelho de governo das pessoas, mas talvez seja um dos mais significativos, pela permanência das marcas escolares nos nossos corpos, imprimindo valores, sentidos e ações em nossas identidades de classe, raça, etnia, nacionalidade e especialmente, nossas identidades de gênero e sexual.
Na escola, não aprendemos apenas habilidades cognitivas, mas também aprendemos sobre verdades específicas sobre quem somos, como devemos agir, qual caminho devemos trilhar e como operar no mundo para corresponder a um ideal de “ser humano”.


Confesso que, enquanto educadora, já senti bastante descontentamento com o sistema disciplinar de corpos masculinos e femininos, no qual menin@s são submetid@s, seja pela arquitetura escolar, seja pelo funcionamento, seja pelas representações nos murais da escola, seja pela linguagem masculina adotada pela direção para se referir às crianças, seja pela intervenção direta nas condutas ideais para cada gênero.
A História do Brasil, por exemplo, contada através das grandes narrativas de homens heróicos e 'transmitida´ pelos livros didáticos, traz representações de homens corajosos, sujeitos “ativos” de suas histórias. Esses sujeitos são, a priori, considerados “pais de família” e não é mencionado que muitos eram homossexuais. Predomitantemente, a linguagem dos livros didáticos é masculina e silencia sobre a participação das mulheres no fazer histórico, marginaliza índias/os, quilombolas e negras/os. As tornam figuras folclóricas e românticas nas datas comemorativas do calendário escolar. Essas datas comemorativas fazem alusão às "diferenças", as “minorias” (mulheres, negras/os, índias/os, quilombolas, lésbicas, gays, transexuais e travestis) que devemos tolerar e respeitar, mas nunca problematizar o lugar dominante do sujeito hegemônico (homem, branco, heterossexual, cristão, classe média).
Não apenas os livros didáticos, mas as práticas docentes que permanecem inquestionáveis, alimentando a formação de meninas subordinadas aos ditames sexistas através da heteronorma dos contos de fadas, que apresentam à elas um padrão etnocêntrico de beleza, impedindo assim de gostarem de seus cabelos e corpos. Além de vivências, brincadeiras e jogos que prezam pelo aprendizado da docilidade e dosmesticação e não pela liberdade de movimento, como aos meninos são apresentados.
Não é diferente com aqueles/aquelas que desafiam os regulamentos impostos pelas tecnologias normalizadoras da educação. Crianças e jovens que se posicionam nas fronteiras dos papéis de gênero, se assumindo, desde a tenra idade, como um gênero dito "desviante" ou uma sexualidade "cambiante", fugindo das expectativas biologicistas de feminilidades e masculinidades, rompendo com os costumes estereotipados e sexistas de movimentos, hábitos, vestuários e expressividade. Esses devires instalam, através da subversão dos pacotes escolares para meninos e meninas, o temor nas cabeças de muitos educadores e em consequência da desestabilização de suas “verdades” sobre gênero e sexualidade. As reações das/os educadoras/es são as mais diversas. Muitas vezes preferem manter a cumplicidade com as violências de gênero entre colegas de profissão ou promover o machismo, o sexismo e a homolesbotransfobia através das coerções na fala, no gesto, na maneira de ensaiar identidades de gênero e sexual das crianças e adolescentes.

É possível romper com discursos e práticas que pretendem formar meninas/os normalizados segundo os ditames sexistas de gênero? Refletir é mais que urgente, é visível a crise de poder, patriarcado e identidade hegemônica na sociedade, a escola e os canônes didáticos se encontram em processo de abalos e perturbações advindos de feministas, movimentos LGBT, teóricos e militantes queer. Problematizar e carnavalizar verdades sobre papéis de gênero e identidades sexuais pode ser um bom começo para mudar essa lógica “normótica” da educação.

terça-feira

Educação sexista

"Carro é coisa de menino!", disse Carla ao ser indagada pelo motivo dela não querer brincar com o colega de carrinho. Carros em miniaturas, assim como as bolas, motos, brinquedos de encaixe/montagem e todos os outros brinquedos de tons azuis são os preferidos dos pupilos. 

A bola corre solta pelo pátio, correm os Emílios de Rousseau, privilegiados divinamente por serem machinhos aprendizes, suando e sentindo o vento em suas faces. Para as meninas, as "pink dolls" são as melhores opções nos armários dos centros e escolas de educação infantil, também há os objetos domésticos, como a cozinha e materiais de limpeza, que são o sucesso e preferência das cinderellas e raponzéis, assim é como querem que sejam apresentadas seus pais e mães ao adorná-las de lacinhos, trancinhas, badulaques e florzinhas dengosas. 

O mais assustador é perceber que elxs não precisam ser estimuladas diretamente pelxs envolvidxs no ambiente escolar a brincar com objetos destinados ao sexo feminimo e ao sexo masculino, assim como ditam as orientações da escolarização sexista. 
Não necessariamente necessitam vivenciar um histórico educacional para apontar o dedo e debochar de outrxs coleguinhas: "essa sua roupa é de menino, haha" São muitas as demonstrações de que as crianças já reproduzem estereótipos de gênero e preconceitos, expressam normatizações e bombardeiam qualquer desvio e vivências mais livres justamente porque são integralmente bombardeadas com preconceitos e padronizações severas desde seus nascimentos. "Você é menina, não pode!" Suas famílias aprenderam muito bem com esse mundo como customizar identidades.

"Vamos trazer balé para as meninas e o que para os meninos? Ah, judô! Judô vai ser ótimo". Mas é claro que uma escola perfeita nos moldes desiguais de gêneros e sexualidades pensa numa formação adequada para meninos e meninas. Com predominância da liberdade, virilidade, bravura para o que chamam de ser masculino e da docilidade e submissão para as futuras damas de seus senhores.

"Agora vamos fazer o desfile, meninas com mãos na cintura, rebolando, soltando beijinho, meninos mostrando o muque, mas não pode rebolar, vamos lá!"
De que seres humanos estamos falando? De máquinas controladas por engrenagens machistas, cruéis e repressoras ou de crianças com potencialidade para vivenciar experiências criativas, aprendizados sobre si mesmas e sobre seus corpos, liberdade para agir e ser quem queiram ser. 

Onde o câncer normótico escolar vai parar? Se alastra por todas as células sociais, resistir é preciso. Encontrar as fronteiras onde os dogmas se diluem, buscar o inimaginável, abrir as feridas, fazer com que se encontrem e se reconheçam enquanto seres plenos em suas tenras existências.

sexta-feira

Ame seu xibiu

Há muito tempo ando refletindo e pensando sobre a vagina e suas representações nesse mundo, onde se idolatram rolas. O falo, pau, cacete, pomba, madeira é sempre visto com virtuosismo. É lindo, endeusado e paparicá-lo, na visão de muitos, é quase um pré requisito para o rala e rola. A vagina sempre é deixada para o mistério do planeta, algo que está sempre ali sem a menor pretensão de gozar. É estranhada, escondida e velada pela sociedade. Desde a infância, vi poucas vaginas, mas muitos pênis desenhados, ilustrados e fotografados à torto e à direito. Vi rola pixada, grafitada e grafada em carteiras, mas nunca vi as lindas bucetas, em seus variados formatos e cores desenhadas por aí.
Me lembro de um episódio que ficou marcado na minha memória afetiva quando
era criança. Como toda boa família machista, a minha com a chegada do primeiro filho homem, se rendeu aos encantos e deleites de ter um machinho no lar. Minha mãe e minha avó, corujas com seletividade de gênero, sempre estimulavam meu mais novo irmão, ainda bebê, à brincar com o seu pintinho. Vó morria de alegria ao ver que o pintinho se mexia e cantarolava: "olha o passarinhoooo!" Era uma verdadeira festa e com muita naturalidade e ludicidade. A família inteira gargalhava com as brincadeiras em torno do piu-piu do meu irmão. Eu achava estranho aquela idolatria, mas sempre pensando que o meu xibiu "não era coisa de deus", sabe?
Imaginava que era algo que não era bonito de se ver e tão pouco de ser admirada, servia apenas como "tomada" para que os fios masculinos adentrassem. Então, assim fui crescendo com a visão de que buceta era pra ser escondida. Até que na minha adolescência, tive a ideia de montar um clube da luluzinha, onde comentaríamos sobre nossos cotidianos e mostraríamos o xibiu uma para outra.
Esta era a regra que eu inventei e hoje penso que a criei justamente para conhecer outras Ginas. Ora, o pau estava por toda parte e penetrava por completo meu imaginário sexual! Eu tinha que fazer algo para conhecer as outras xavaskas. A ideia do clube aconteceu uma única vez, pois ao mostrarmos nossas pepecas na roda, vieram juntos os medos, preconceitos e condenações estéticas que instauraram um clima tão hostil entre as meninas que eu me arrependi amargamente de ter tido aquela ideia. "Olha, parece um largarto", "Que fedor!". Eram condenações cruéis sobre pêlos, lábios, cor, cheiros, tamanhos e formatos que deixavam a polêmica do tamanho do pênis parecer fichinha.
O tempo foi passando e fui percebendo que ter amizade com a xana era fundamental para a liberdade da mulher. Se conhecer aprendendo a gozar sozinha, porque temos todas as "ferramentas" para tal. Nossa buceta é soberana, plena e completa.
A mensagem era só essa mesmo: toque, arroche e idolatre seu xibiu, pois geral sempre vai condenar esse amor.

terça-feira

Misoginia em tempos de rede

Em que tempo nós estamos vivendo mesmo? Na época em que as mulheres eram ensinadas, prendadas e obrigadas a ter “bons modos” e aprenderem a se comportar corretamente em ambientes públicos?  Que eram condenadas e jogadas à fogueira por desvios no comportamento? No século XIX, Rousseau defendia que a educação das meninas fosse diferente, baseada nos valores serviçais, com a finalidade de agradar e atender aos seus senhores. Essas ideias foram fortemente combatidas por inúmeras vozes, lutas, movimentos feministas, libertários e consideradas ultrapassadas.
Ultrapassadas, mas que sempre ressurgem incendiárias e indignadas com os novos tempos. Na recente confusão gerada pelas fotos de Vanessa Guerra e Adriano Iglesias no facebook, o post de Edgar Fonseca Alves, que sai em defesa do macho alfa, demonstra que algumas mentalidades, vistas como antiquadas, ainda vigoram, se expressam, são aplaudidas e compartilhadas à fole pelos ditos defensores dos bons costumes e da cartilha patriarcal do ser mulher. Além da ridícula defesa do comportamento apropriado para uma mulher sob a pena de levar uma porrada merecida, é de se espantar a misoginia gritante ao afirmar que a Lei da Maria da Penha tinha que servir apenas às seletas donzelas, “de princípios e valores”, ou seja, para mulheres livres, que como bem Edgar descreveu, vivem “enchendo a cara, fazendo o que querem… Quando querem… E como querem”,  só mesmo com duzentas chibatadas no lombo para aprenderem verdadeiros modos de viver e ser mulher.
 A Lei Maria da Penha, criada por uma necessidade de proteção maior às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar e que vale salientar, não tem atendido satisfatoriamente às demandas de violência contra mulher e feminicídios, foi justamente aprovada para que nós não tenhamos mais medo de sermos quem somos, de sermos quem quisermos ser, de ir e vir sem sermos importunadas por abusos, agressões, violências simbólicas e físicas travestidas de “brincadeiras” descomprometidas.
Não bastou a revolução sexual, a emancipação feminina nas esferas sociais, o movimento feminista com suas lutas, para que o ódio e a frustração que algumas pessoas sentem ao se deparar com mulheres que fazem o que querem, que não aceitam passivas abusos e imposições que o machismo tenta enfiar goela abaixo, acabasse ou que ao menos, aparecesse envergonhado de defender algo tão torpe quanto uma “educação” para mulheres se comportarem nas ruas. Para os que endossam os mais de mil compartilhamentos das palavras de Edgar, eu digo-lhes que não adianta espernear contra a independência e a liberdade da mulher, não suportaremos mais caladas, incomodaremos com nossas livres expressões cada vez mais.