quinta-feira

Sonho de andar na rua, tranquila.

Esse é um breve relato sobre uma vida inteira andando à pé e recebendo olhares, quando não outras expressões, de assédio machista. Chego aos trinta anos e nada mudou. Consigo me lembrar da minha pré adolescência, por volta de 12 a 13 anos, quando ia à banca de revistas ou comprar pão e durante o caminho, alguns torpes barbados me fitavam com olhos arregalados ou encaravam minhas pernas e bunda. Poxa, como era doloroso saber que quando passava, aqueles mesmos barbados estavam a secar minha bunda. Eu sentia vergonha de mim, sentia vergonha e nojo do meu próprio corpo, que mesmo naquela tenra idade, atraía aqueles olhares asquerosos. Eu me culpava.

Naquela idade, eu não entendia o porquê do assédio ao andar na rua. Hoje sei que minha existência como mulher negra, num país altamente machista e racista, tem um peso muito forte. Um peso fortemente sexualizado e objetificado, à custa de muitas violências romantizadas na nossa história sócio cultural e alimentado diariamente por uma mídia que lucra com a imagem da ~mulata tipo exportação~, que vende nossos corpos enquanto corpos sem almas, que só rebolam, que só dançam, que são só sensuais, que só servem ao olhar masculino e existem apenas para ~servi-lo~.

Fui crescendo e essa vergonha do meu próprio corpo se transformou em resistência. Não importava com que roupa eu estava saindo, eu iria sair da forma que desejasse e iria olhar feio, estirar o dedo ou xingar quem estivesse me interpelando com olhares tarados. Em alguns casos, sentia medo, em outros estirava mesmo o dedo e o sujeito se encabulava ou ficava surpreso com minha reação. Eles nunca esperam reação, eles esperam que a gente abaixe a cabeça e continue andando ou que nos encabulem e nos sintamos constrangidas. E sem nenhuma piedade, eles possam debochar da situação, gozando da perversão de mexer com uma estranha na rua e não sentir receio algum.

A cultura de machismo não cessa de produzir medos.

É frustrante sentir que todas as discussões, lutas e gritos ecoados pelos feminismos não são suficientes para convivermos pacificamente com os homens em nossas rotinas diárias, em nossas caminhadas, na nossas idas à padaria ou ao mercado. Nos nossos lazeres diurnos e noturnos, não temos o direito de andar sozinhas e seguras sem sermos interpeladas pela sexualização dos nossos corpos. Falta muita responsabilização por parte dos homens.

Sonho com um mundo em que todas possam andar tranquilamente, da maneira que decidiram, sem serem violentadas pelo machismo. Não te devemos um sorriso, não te devemos nossos corpos, não te devemos nada, deixem-nos passar!




quarta-feira

Palavras e Pesos

Natal, 7 de dezembro de 2016


Muitas vezes, acompanhar movimentos sociais (feministas, anticapitalistas, antirracistas, movimentos negros e afins) através de redes sociais nos faz mergulhar numa esfera monotemática. Abro o twitter e vejo uma explosão de pensamentos, comentários e críticas inseridas nas mesmas narrativas de sempre (sempre?). Nessa última semana, o assunto "aborto" veio à tona devido um julgamento do STF de um caso específico, no qual se anistiou uma clínica que realizava abortos, julgando como legal a prática do aborto até os três primeiros meses.

A partir desse caso, acompanhei uma guerra de pensamentos. Um deles se mostrava contrário à prática do aborto tendo em vista o argumento religioso que dita que devemos proteger a vida (sic) do embrião em formação. O outro argumento, o qual defendo, pautava-se pela autonomia da mulher, sobre o direito ao controle reprodutivo de seu corpo e pela liberdade de decidir interromper ou continuar a gravidez.

Neste argumento, aparentemente havia uma narrativa hegemônica, observada em postagens de mulheres, cuja centralidade estava na luta pelo direito ao aborto seguro e legal. Mas algo que me inquietava e parecia não compactuar com essa narrativa. Era o fato de usarem a metáfora do "aborto", diziam: "o homem aborta". Exemplo disso é esta charge:


Ao falar que homem aborta, as pessoas relacionavam a prática do aborto com o abandono, com a (não) ética e com os privilégios sociais que os homens possuem quando resolvem não se comprometer com a paternidade. Dessa maneira, contribuíam para a imagem da mulher que aborta como um ser que comete uma falha de caráter, que foge à sua responsabilidade (seu dever de ser mãe). Por que então relacionar o aborto ao abandono paterno se a luta é pela desmistificação/descriminalização da mulher que aborta? Então, é preciso atentar para as palavras, elas carregam história, significação e peso. Homem não aborta, pois aborto não tem nada a ver com abandono e sim com o poder de escolha da mulher. A mulher que aborta também não está abandonando uma responsabilidade, porque esta não é inata e sim imposta, é uma imposição social ditar que a mulher permaneça gestante e tenha um bebê.

Parece contraditório, mas o discurso ás vezes nos escapa e mesmo lutando contra algo, somos pegas reproduzindo um discurso contrário às nossas intenções. Como é bom escurecer as coisas e perceber suas nuances...

As palavras pesam.